Como a Renault tentou defender a honra gaulesa na guerra dos super-sedãs no início dos anos 1990 com o Safrane

Por Renato Passos (*)

Quando falamos de Renault no Brasil, a imagem que imediatamente salta aos olhos é a de modelos franciscanos. Quase sempre frugais e robustos, costumam visar o bom custo versus benefício sem qualquer aspiração ao mercado de topo. Entretanto, fora do nosso país a coisa não é exatamente assim: sedãs médios e executivos permaneceram na prateleira da marca francesa durante bons anos. E mesmo atualmente eles ainda existem: basta ver o Renault Talisman, sucessor do Laguna – este, por sua vez, chegou a ser vendido por aqui nos anos 1990 e 2000.

Entretanto, neste mesmo período, existia um sedã ainda maior que o Laguna e desconhecido do público brasileiro: o Renault Safrane. Lançado em abril de 1992 para competir com carros da estirpe de Audi 100, Mercedes-Benz Classe E, BMW Série 5, Opel Omega, Peugeot 605, Citreon XM e Ford Scorpio, trazia consigo uma diferença significativa frente a estes competidores: a despeito do formato da carroceria, o vidro traseiro era levado junto do porta-malas ao acessar este compartimento, sendo assim um notchback em detrimento de um sedã formal.

Com 4,74 metros de comprimento, era um veículo bonito e elegante, sem grandes detalhes em seu desenho de linhas fluidas. Bom espaço interno e rodar confortável eram marcas inegáveis do modelo, que buscava corrigir os erros de dirigibilidade e qualidade de construção de seu anterior, chamado Renault 25. Vendido até dezembro de 2000 no mercado europeu com um facelift marcante em julho de 1996, o veículo da marca de Boulogne-Billancourt nunca foi um sucesso estrondoso de vendas, com exceção para seu país natal onde a receptividade era um pouco melhor.

Em termos de motorização, uma vasta gama de propulsores foi oferecida ao longo de sua vida: desde motores diesel sobrealimentados de 2,1, 2,2 e 2,5 litros; passando por motores a gasolina de 2,0, 2,2, 2,5 e 3,0 litros de 4, 5 e 6 cilindros. Versões com câmbio automático e também com tração integral (ao contrário de apenas nas rodas dianteiras, como padrão) eram disponíveis em algumas versões e acabamentos.

Frise-se que alguns dos propulsores citados vinham de outras marcas: se o motor 2.5 (2499cm³) S8U-L762/M763 utilizado na primeira fase tinha origem em uma parceria entre a Iveco e a Renault, os motores 2.0 de quatro cilindros e o 2.5 de cinco cilindros oferecidos na segunda metade da vida útil eram fornecidos pela Volvo. O V6 de 3,0 litros, naquele momento, se tornava o L7X ESL, fruto de um projeto entre as três grandes marcas francesas para substituir o V6 PRV, fruto de uma parceria do mesmo trio com a Volvo em meados dos anos 1970.

Este último motor, em sua versão Z7X 722/723, equipava o Safrane desde seu lançamento como propulsor dos modelos de topo, carregando consigo o estandarte máximo da marca do losango. Com duas válvulas por cilindro tocadas por um comando de válvulas em cada bancada e 2,975 litros de deslocamento, este motor entregava 170cv de potência @ 5500 rpm, bem como um torque de 240 Nm @ 4500 rpm.

Seus rivais, sem muita dificuldade, passavam dos 200cv e esbanjavam desempenho pelas autoestradas europeias. Não obstante, o Safrane era um carro gostoso de se dirigir por longas distancias, um voyager de classe: faltava motor pelo potencial ali notado. E como a cereja no topo do bolo, era o auge da guerra dos super-sedãs europeus.

Pimenta sim, avec elegance!

Se você é ligado no mundo dos automóveis, certamente conhece a BMW M5. O sedã da marca bávara é, talvez, o mais reconhecido sedã executivo com roupas esportivas e garras afiadas do mundo. Entretanto, na Europa do início dos anos 1990, seus concorrentes decidiram aparecer para uma luta ferrenha, buscando vencer seu motor de seis cilindros de 315cv atrelado a uma dinâmica extremamente refinada

Neste movimento, surgiram um sem número de concorrentes. Sedãs executivos que vinham desde o Mercedes-Benz 500E, com um motor V8 e montagem realizada pela Porsche, até o Lotus Omega – uma insana versão de 377cv e câmbio de Corvette em um modelo similar ao fabricado no país. Sem contar concorrentes menos potentes, como o Alfa Romeo 164 Q4, Volvo 850 T5, Saab 9000 Aero, dentre outros. A Renault queria entrar no jogo, trazer um pouco de raça gaulesa para essa briga. Mas como apimentar o Safrane. Algumas respostas eram óbvias, mas outras nem tanto.

Pimenta franco-germânica em ação

A base era o Safrane com motor V6 e tração nas quatro rodas. No lugar do motor Z7X 722/723, entraria uma outra variação do motor PRV V6 dotada de dois turbos e que equipava o cupê Alpine A610 – este, por sua vez, uma resposta francesa aos Porsche, Lotus e outros carros de alta estirpe no velho mundo. Originalmente com 250cv @ 5.750 rpm de potência e torque de 350Nm @ 2.900 rpm, o motor Z7X 744 do esportivo gaulês ganharia mais pimenta. Esta viria das mãos da Hartge, preparadora alemã comumente ligada ao mundo das…BMW! Com novo nome (Z7X 726), o sistema de injeção Bendix-Siemens era revisto, enquanto saiam os turbocompressores Garrett T3 do Alpine em prol de um par de componentes da KKK alemã.

O que tínhamos depois desse acordo entre França e Alemanha? 268cv às 5.500rpm de potência e 363Nm de torque às 2.500rpm. A ideia era passar dos 300cv, mas dados da época informam que o sistema de transmissão não aguentaria tamanho esforço. Ainda assim, esta usina de força era suficiente para levar o sedã de quase 1.800 quilos até os 100 quilômetros por hora em 7,2 segundos, chegando aos 250 quilômetros por hora de velocidade máxima. Ah, e em tempo: era o mais potente veículo fabricado na França.

A transmissão era inteiramente revista, incluindo a caixa manual de 5 velocidades, e a força chegava ao solo por meio de pneus 225/45 R17 nas quatro rodas. Suspensões dotadas de controle eletrônico de amortecimento melhoravam ainda mais a apurada dirigibilidade do Safrane, que apresentava sistema McPherson na porção dianteira e Multilink no eixo de trás. Na hora de parar, freios ventilados de 320mm na dianteira e sólidos de 265mm na traseira retornavam a voitture francesa à imobilidade.

No campo do visual, o Renault Safrane também se tornava mais atraente sem se vulgarizar. Um body kit composto por saias, spoiler dianteiro e aerofólio traseiro mudava o aspecto do carro e era fruto de trabalho da Irmscher, que também tinha auxiliado no acerto de suspensão e chassis. Não conhece a Irmscher? Não tem problema: é uma famosa preparadora. Alemã. Ligada historicamente aos Opel: definitivamente, o alvo do Safrane Biturbo eram os sedãs germânicos…

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Por dentro, muito luxo: bons bancos em couro de alta qualidade e com regulagens elétricas diversas, ar condicionado bi-zona, CD Player Philips com equalizador gráfico, telefone a bordo, inserções em madeira e computador de bordo compunham o agradável clima do habitáculo, com luxo e bom gosto visível aos olhos.

Retour de flamme (ou “tiro pela culatra” em francês)

Com a produção iniciada em 1994, o Safrane Biturbo durou pouco: apenas 806 unidades foram feitas até setembro de 1996, em três versões de acabamento (RXE, Ellipse e Baccara). Além de ter sido um dos Renault mais exclusivos de sempre, sua raridade já chama a atenção nos colecionadores de carros antigos europeus. Além disso, seu título de mais potente carro na terra do Asterix durou até 2016, quando finalmente o Peugeot RCZ R roubou-lhe o título de mais potente carro francês por meros 2cv.

O que deu errado? Pelo preço, boa parte do seu público-alvo preferia (e podia) gastar algo a mais para andar nos sedãs alemães, com imagem “premium” mais consolidada e desempenho equivalente. Estamos falando de um carro que, nos dias de hoje, custaria próximo dos 95 mil Euros no mercado europeu!

Não obstante, a falta de versão com volante à direita para o Reino Unido (consumidor contumaz deste tipo de veículo) e de câmbio automático (não havia no mundo transmissão que aguentasse tanta potência para um motor transversal, dianteiro e com tração integral) afastou outra parte de um eventual grupo de compradores.

Por fim, relatos de fragilidade no câmbio manual serviram como pá de cal neste ousado projeto parisienne. Assim, com o advento da reestilização de 1996, era o adeus ao Safrane Biturbo: nunca mais a França veria algo deste gênero pelas mãos de suas três fabricantes. Mas bem que gostaríamos de ver novamente algo feito para cruzar a França de Nice a Calais em alta velocidade, com conforto e segurança – com ou sem ajuda alemã, não importa neste caso.

(*) É engenheiro mecânico formado pelo Cefet-MG

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