Há mais de 30 anos, adicionar turbocompressor a um motor tricilíndrico já era receita para diversão

Por Renato Passos (*)

Downsizing. Para qualquer leitor ou apaixonado com a vida automotiva, esta palavra está mais presente do que nunca em nosso vocabulário. É sinônimo de se obter mais com menos, mesma potência com motores menores, com o uso mais racional e evoluído da energia gerada. Afinal, vivemos uma era em que os motores com 1-litro de deslocamento, quando dotados de ferramentas para melhor rendimento, apresentam desempenho idêntico aos motores 60% maiores e não necessariamente obsoletos de 10 anos atrás.

No Brasil dos anos 2010, um veículo trouxe de forma ostensiva esta solução indicada, tornando difícil a separação entre criatura e criador – ou, no caso, entre modelo e motor: inicialmente lançado com o moderno motor EA211 sem sobrealimentação, o compacto Volkswagen up! teve sua existência fortalecida com o relativo sucesso da versão TSI, dotado de turbocompressor empregado no motor de 1,0 litro já existente – acompanhando, também, uma série de adequações técnicas para o recebimento do sistema e seus efeitos no propulsor.

A tampa preta característica dos modelos equipados com este motor rapidamente tornou-se símbolo do pequeno alemão, que trás consigo fãs e detratores em razão talvez semelhante. Afinal, a despeito do consumo com marcas excepcionais normalmente atreladas ao veículo, é possível ter diversão com um motor 1.0 de três cilindros sobrealimentado? Quem ganha de quem nessa história? O fracasso do Gol 1.0 Turbo de 2001 – este sim o primeiro motor de um litro sobrealimentado do país – se repetiria?

E tudo isso apenas no mundo dos carros originais. Quando adentramos o universo das preparações – já vastas e diversas para o modelo em questão – as dúvidas e rixas se intensificam em razão exponencial. Entretanto, de quem foi a ideia de fazer um hatchback tão pequeno com viés esportivo justamente colocando mais pimenta em um motor 1.0? Saiba que esta receita é mais antiga do que se pode imaginar – mas não surgiu o efeito desejado em sua estreia.

Sushi no CAFE – Diferente do que você pensa

Não, não estamos cometendo uma aberração culinária. Após a primeira crise do petróleo, em 1973, o governo norte-americano inseriu as normas do consumo de combustível corporativo médio em meados de 1975. Em inglês, Corporate Average Fuel Economy – ou CAFE, como ficou conhecida pelos fabricantes, mídia e consumidores.

Basicamente, ano após ano, o consumo médio de combustível dos veículos disponíveis no line-up dos fabricantes deveria ser melhor, com resultados calculados através de fórmulas matemáticas próprias. Desta forma o governo buscava que, ano após ano, o gasto desmedido de combustíveis derivados de petróleo fosse reduzindo, impactando menos na economia norte americana como notado após o embargo da OPEP após a Guerra do Yom Kippur.

Naturalmente, como forma de atendimento a esta demanda, uma série de medidas foram tomadas. Entretanto, mesmo com a retirada de motores V8 ineficientes, uso de novas tecnologias como injeção eletrônica e mesmo a reconstrução inteira de veículos, as metas de consumo pareciam impossíveis de serem cumpridas pelos fabricantes locais. Após muita análise, os fabricantes ianques perceberam que o caminho para um período de maior tranquilidade frente aos mandamentos da CAFE estava do outro lado do mundo – na terra do sol nascente, do sushi e do judô. Basicamente, no Japão do fim dos anos 1970. Utilizando, basicamente, o velho mote de que “se não pode contra eles, junte-se a eles”.

Invadindo aos poucos – mas de forma sólida – o mercado norte-americano desde o início dos anos 1970, alguns fabricantes japoneses já estavam bem estabelecidos naquele mercado. Seus produtos ofertados eram diametralmente opostos do carro típico da General Motors, Ford ou Chrysler naquele momento: carros econômicos, pequenos e confiáveis frente aos beberrões, imensos e problemáticos modelos locais que fechavam aquela década.

Sabendo do sucesso destes automóveis, a General Motors não hesitou: no final dos anos 70, a GM iniciou o Projeto M e começou a fazer o seu próprio carro “japonês”. Basicamente, uma das primeiras tentativas de se fazer um automóvel norte-americano conforme as práticas e produtos dos fabricantes orientais. Esta empreitada logo se mostraria um fracasso: conforme os burocratas da gigante de Detroit, o carro não se mostrava lucrativo. Logo, não pagaria o seu desenvolvimento e simplesmente não compensaria existir apenas para atender às demandas do CAFE.

Neste momento surge, como uma luz no fim do túnel, um fabricante ainda não estabelecido no mercado norte-americano – e mesmo em outros mercados interessantes espalhados pelo mundo: a Suzuki, que entendia como poucos a respeito de carros realmente pequenos e econômicos ao atender o mercado de minicarros para o mercado doméstico japonês (também conhecidos como kei-cars).

O mundo dá voltas

Neste momento, desenhava-se uma relação de ganho para ambos os lados. De um lado a General Motors venderia o abacaxi sobre rodas referente ao Projeto M, ainda inacabado, para a Suzuki. Em troca, receberia 5% na participação da empresa japonesa. Interessada em adentrar em um mercado superior ao dos kei-cars com alcance apenas no mercado doméstico japonês, a Suzuki topou.

Negócio feito, mãos à obra: a fabricante nipônica concluiu o trabalho de design e desenvolvimento e colocou o carro à venda a partir de outubro de 1983 no mercado japonês, com o nome de Suzuki Cultus.  Leve, com versões sempre em torno de 650kg, era equipado com um motor simples, mas não necessariamente obsoleto: construído totalmente em alumínio, o propulsor G10 da marca nipônica tinha três cilindros e dotado de comando único de válvulas no cabeçote movimentando duas válvulas por cilindro.

Deslocando 993cm³ – ou praticamente 1,0 litro – e dotado de carburador de corpo simples e taxa de compressão de 9,5:1, entregava 49cv a 5.100 rpm de potência e 77Nm de torque às 3.200 rpm. Se pararmos para pensar, temos uma proporção próxima de 75 cavalo-vapor por tonelada – eis um valor comum em diversos modelos 1.0 brasileiros no começo dos anos 2000.

Logo, um desempenho honesto e ótimas marcas de consumo de combustível eram características do pequeno Suzuki, que também ganharia outros motores, injeção eletrônica, ar-condicionado, versão de cinco portas e até mesmo câmbio automático ao longo de sua história. O modelo foi exportado e fabricado em diversas partes do mundo, com variantes sendo fabricada até 2004 na Colômbia com o nome de Chevrolet Sprint.

Sim, Chevrolet. O malfadado Projeto M voltaria às mãos da General Motors, exibindo diversas marcas e denominações e em vários países diferentes: Suzuki Cultus. Chevrolet Sprint. Holden Barina. Suzuki Swift. Pontiac Firefly. Suzuki Forsa… Um destes países seria o próprio Estados Unidos, mesmo com a Suzuki vendendo por lá seu compacto com o nome de Suzuki Forsa. O que houve para que isso ocorresse?

Basicamente, em meados dos anos 1980, o fantasma do CAFE voltou a assombrar a Chevrolet. Desta forma, seria interessante realizar o mesmo caminho já trilhado em outros mercados e transformar o pequeno Suzuki em um modelo com gravata na grade dianteira. Afinal, qualquer coisa pequena, leve e de pequena cilindrada seria imensamente mais econômica que os glutões da fabricante de Detroit. E, assim, as metas governamentais de consumo seriam alcançadas.

Sendo assim, o Suzuki Cultus se tornaria o Chevrolet Sprint em meados de 1985 na terra do Tio Sam. Disponível inicialmente nas versões Base e ER, tinha como meta ser o carro de entrada da Chevrolet em seu maior mercado e, evidentemente, auxiliar nas demandas do CAFE. Não obstante, era o menor carro a venda nos EUA durante alguns anos, para além de ter conquistado uma fama de confiável após pouco tempo.

Entretanto, o papo sério era em relação à economia de combustível, e o Sprint cumpria seu desígnio com maestria: média de consumo homologada de 16,8km/l de gasolina para a versão Base e impressionantes 20,2km/l para a versão ER – que, diga-se de passagem, significava Extended Range – ou autonomia estendida em bom português. Mas no país das highways e grandes distâncias, manter um ritmo de velocidade com tão pequeno em carro de aparência e sensação tão frágil não era exatamente legal.

Sim, estamos falando de um veículo com peso inferior a 700kg em ordem de marcha, mas os mastodontes americanos pareciam querer empurrar o pequeno nipo-americano para fora da estrada. Afinal, quem comprava um subcompacto deste não pensaria, em tese, em ser um viajante: um Chevroler Sprint parar na garagem de alguém era fruto de escolhas racionais e sem qualquer apelo para além de baixo custo de aquisição e consumo frugal.

Entretanto, era necessário um pouco mais de gás, um desempenho um pouco mais alegre. Sem perder, logicamente, o viés econômico e de baixo custo do pequeno nipo-americano. E é aí que a coisa começa a tomar caminhos interessantes.

Sai a razão, entra a pimenta

A salvação estava, novamente, no Japão. E respondia por G10T – ou a versão com turbocompressor IHI RHB32 atrelado a um resfriador do tipo ar-ar (intercooler) no motor até então utilizado, disponível no Japão desde junho de 1984. Up! TSI, sinto muito: neste quesito, você não foi inovador no âmbito mundial! Ainda utilizando carburador, o motor sobrealimentado entregava 71cv às 5.500 rpm e 107Nm às 3500 rotações por minuto no que se refere a potência e torque, respectivamente.

Era hora de fazer o Sprint ser um pouco mais palatável em termos de direção e emoção. Entretanto, se é necessário ser feito, que seja realizado de forma excepcional: os engenheiros da Chevrolet se apoiaram na versão esportiva já existente do Cultus no Japão com esse motor e se dispuseram a fazer um carro ligeiramente fora da caixa. E ele chegaria: em 1987, o mercado norte-americano conheceria seu novo aspirante a mini-esportivo. Chamado simplesmente de Chevrolet Sprint Turbo, seria chamado de Pontiac Firefly Turbo no mercado canadense – mas sem maiores modificações fora a mudança de identificação.

Um acerto de suspensão mais rígido, mesmo utilizando pneus minúsculos de 12 polegadas, foi aplicado no processo de rebeldia controlada do pequeno hatchback. Para o mercado americano, o carburador foi substituído por um sistema de injeção monoponto Bosch L-Jetronic. Um sistema de freios bem dimensionado e uma transmissão de cinco marchas de engates corretos também faziam parte do pacote-padrão. Isso, por si somente, já transformaria o Sprint Turbo em um belo brinquedo: basta citar que a aceleração de 0 a 96km/h ficava na casa dos 9 segundos, mesmo apresentando números de consumo superiores a 16km/l como homologado no CAFÉ

Ainda falando de números, transformando novamente os valores indicados em potência por tonelada, e sabendo que o compacto não passava dos 750kg, temos algo por volta de 94 cavalos-vapor a cada mil quilos de peso. Pode não encher os olhos atualmente, mas era desempenho bastante alegre nos anos 80. Números, entretanto, não são a completude do que se espera de um hot-hatch: a dinâmica ajudada pelo baixo peso era deliciosa frente às gelatinas sobre rodas das ruas norte-americanas. Havia, entretanto, relatos de torque-steering: a direção puxava para os lados nas acelerações vigorosas onde os pneus não conseguiam colocar toda a força gerada no solo

Mas havia mais do que isso: vendido apenas nas cores vermelha e branca e com carroceria de três portas (as outras versões ofereciam cinco portas como opção desde 1986), o Sprint Turbo trazia consigo um kit aerodinâmico nada discreto (mas de bom gosto), calotas aerodinâmicas como era coqueluche nos anos 1980 e faixas contrastantes pela carroceria. A cereja no topo do bolo, talvez, estava nos emblemas: a pequena inserção assimétrica na porção frontal do veículo para captação de ar no intercooler do rojão de bolso trazia um ar de “pequeno furioso” que enchia os olhos de quem gostava de carros naquela época. Algo como um Pinscher sobre rodas.

O interior também foi atualizado. Ao contrário do Sprint normal, o Turbo trazia conta-giros de série. Quanto à marcação da sobrealimentação, uma pequena luz refletia o aumento da pressão do turbo, trazendo consigo um pouco de emoção na hora que as acelerações se tornavam realmente sérias. Também estavam presentes um volante esportivo de três raios com a inscrição “TURBO” e assentos especiais nos bancos dianteiros, com tons de cinza e vermelho realçando o caráter furioso do Chevrolet.

Mas tudo que é bom dura pouco: sabendo que uma nova versão do Cultus viria em breve – agora renomeado Suzuki Swift, como nós o conhecemos no Brasil no início dos anos 1990, o Chevrolet Sprint Turbo foi tirado de linha ao término da linha 1988. Apenas dois anos de mercado e um uso imenso como carro de corridas amadoras no interior dos EUA fazem com que, dia após dia, o Sprint Turbo seja apenas uma memória de um passado. Mas que deixa, na atualidade, sucessores espirituais de que rebeldia não tem tamanho – e diversão e economia podem, sim, andar de mãos dadas.

(*) É engenheiro mecânico formado pelo Cefet-MG

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