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Quando a Ford ajudou a GM a vender mais carro

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Pode parecer maluquice, mas isso aconteceu graças ao sucesso de uma e o caos da outra

Por Renato Passos (*)

Tanto quanto política, religião e futebol, a disputa entre certos fabricantes parece eterna e parte não somente da cultura local, mas também arrasta consigo fiéis seguidores e detratores. Nesse prisma, uma das mais famosas – senão a mais conhecida – corresponde às disputas locais entre a Ford e a General Motors: dois dos três gigantes americanos fabricando carro em quantidades plurais em cantos distintos do planeta, brigando por cada palmo de mercado e o coração de cada consumidor.

Na Austrália, por exemplo, a coisa é ainda mais intensa. Nas pistas, a batalha entre a Holden (marca-chefe da GM no local) e a Ford arregimenta torcedores que, assim como os hooligans ingleses, brigam de forma física e fútil entre si. Mas não está na terra dos cangurus o foco da nossa história de hoje e sim na pátria-mãe do Commonwealth, a Inglaterra da rainha imortal = e como diria a filósofa contemporânea Sandy, “o que é imortal não morre no final”.

Foquemos, portanto, no Reino Unido dos anos 1970 – e nossa história começa com a Vauxhall, marca inglesa absorvida pela GM em 1925 e estandarte da gigante de Detroit naquele local.

Chalton, ferrugem e Cerian

Desde meados dos anos 1960, a Ford era a líder de vendas na Inglaterra. Inicialmente com modelos como o Anglia e o Popular, provindos da década anterior, a marca do oval azul prontamente alcançou o topo com o Escort e seu irmão maior, o Cortina (nome de uma famosa praia italiana). Eram carros bem construídos, racionais, de boa dirigibilidade e convergente com o gosto do público britânico. A cada passo dado, o sucesso da marca de Henry Ford aumentava.

Por outro lado, a Vauxhall não ia bem. A marca sediada na cidade de Chalton era conhecida pelos produtos de baixa qualidade e, principalmente, pela oxidação que atacava seus veículos para desespero de seus proprietários. A bem da verdade, tais ocorrências eram comuns nas décadas anteriores. Mas a memória era remanescente e o público, reticente.

O principal efeito de tal estigma se refletia nas baixas vendas dos Vauxhall Viva e Victor frente a seus concorrentes da Ford e mesmo de outras marcas. Paralelamente, dois pontos distintos entre si eram dignos de nota: primeiro, a Ford buscava a uniformização de sua linha entre a ilha britânica e o continente, até então com modelos distintos entre si como se fossem de fabricantes diferentes.

O segundo ponto era que o braço da GM na Europa continental ia bem, obrigado: a Opel fazia bons carros a preço condizente e de forma a atrair o público. Frente ao que ocorria na irmã inglesa, a marca alemã estava muitos passos na frente. Esta, por sua vez, via o Ford Cortina como alvo: uma versão baseada na plataforma encurtada do Vauxhall Victor começou a ser estudada como forma de contra-atacar a dominância de sua concorrente yankee.

Em 1971, esse modelo começou a tomar formas mais sérias e foi chamado de Vauxhall Cerian – sim, nome de remédio – ainda em estudos secretos na sede do fabricante. Sem grade frontal, com maçanetas embutidas como parte de um desenho totalmente realizado na Inglaterra, o modelo inicialmente sedã também desaguou no protótipo de um hatchback.

No ano seguinte, o desenvolvimento da porção interior do veículo demonstrou o quão sério era aquela proposta. Um cupê de três portas também foi desenvolvido como parte do projeto. Mas, como demonstração do caos que reinava naquele local, uma outra equipe da Vauxhall trabalhava em um projeto paralelo e concorrente!

Basicamente, era um Vauxhall Viva maior com sedã de 2 e 4 portas bem como hatchback de 3 e 5 portas – novamente tendo como benchmarck o benquisto Ford Cortina. Mas, com desenho mais tradicional, buscava agregar elementos de design já presentes na história da Vauxhall e não era tão inovador quanto o Cerian.

Mas a coisa ia mal no setor financeiro da marca de Chalton e ambos os projetos foram sumariamente cancelados. A coisa tornou-se séria a ponto de a GM pensar em fechar os setores de pesquisa, desenvolvimento e fabricação da Vauxhall após a entrada da Inglaterra no Mercado Comum Europeu em 1973, tornando-se uma mera importadora de veículos feitos no continente.

Entretanto, tal ideia foi cancelada em parte: a Vauxhall continuaria fazendo carros no Reino Unido. Mas estes, por sua vez, seriam principalmente os bem-construídos Opel vendidos no mercado continental. Ainda assim, um fantasma assombrava a todos: qual seria o concorrente do Cortina? Percebam: que a Vauxhall tinha como obsessão fazer o seu Ford Cortina. A coisa se tornaria cada vez mais séria com o passar do tempo.

Matador de Cortina

Incrivelmente, a coisa ficaria mais séria. No continente europeu, a Ford começava a repetir o sucesso do Cortina em diversos países, desenvolvendo a sexta geração do Ford Taunus (não confundir com o Taurus de 10 anos depois!) com muita coisa em comum com seu irmão britânico. E a Opel, assim como sua equivalente inglesa, não dispunha de um totalmente de um modelo para abafar o ímpeto de sua principal concorrente.

A questão, entretanto, era relativa. A Opel tinha em sua linha o Ascona, maior que o nosso famoso Chevette e menor do que o Opala. Se fosse pouca coisa maior, se tornaria aquilo que tanto almejavam: um matador de Taunus e Cortina. E isso, obviamente, serviria também para as dependências da rainha imortal, por que não?

Mas as cabeças da Vauxhall não viam a coisa desta forma. Afinal, sentiam-se subjugados em suas capacidades de desenhar e desenvolver um veículo novo. Prontamente, mudanças no desenho do novo Ascona ligeiramente maior em desenvolvimento foram propostas, buscando maior identificação com o público inglês. Um novo interior também foi cogitado, mas prontamente rejeitado pelos chefes de Charlton.

Em 1973, a proposta tomava formas mais sérias. Chamado Magnum (é, nome de picolé!), previa-se seu lançamento para meados de 1977, contendo versões sedã e hatchback. Mas no ano seguinte chegaria um furacão que colocaria tudo aquilo de cabeça pra baixo. E o nome desse furacão era um novo presidente da Vauxhall indicado pela GM chamado Bob Price.

Tendo conduzido com sucesso a GM na África do Sul, colhendo bons frutos por seu trabalho contínuo baseado na melhoria da qualidade construtiva dos produtos ali fabricados. Sua meta na Vauxhall seria algo semelhante: mantê-la viva a partir de modelos que não fossem mais desprezados pelo público a partir da falta de qualidade dos veículos oferecidos.

Sua primeira grande ação sobre o futuro Magnum foi simples: nada de motores e transmissões próprias da Vauxhall como previsto até então. Embora fabricadas na velha ilha, seriam utilizados componentes semelhantes àqueles adotados pela Opel. Pequenos ajustes de desenho também foram feitos, permitindo o maior compartilhamento de componentes – e consequente aumento de qualidade e menor preço construtivo – com sua irmã alemã.

Mas, incrivelmente, o projeto fora paralisado novamente. Apenas o nome fora utilizado em um novo modelo, um Vauxhall Viva “crescido”, como uma solução temporária para aquela que era a obsessão da GM: o seu Ford Cortina, competente e competitivo. Em 1975, com o tempo passando, o furacão Bob Price tomaria uma série de decisões arriscadas: era o tudo ou nada em busca de maior participação de mercado.

O cavalheiro da esperança

O plano era simples, mas extremamente arriscado. A Vauxhall teria seis meses para lançar o Ascona de nova geração no mercado inglês. Para diferenciá-lo daquele oferecido no mercado continental, ele teria a frente o Opel Manta – um cupê baseado no próprio Ascona e de sucesso na Alemanha e arredores.

Além disso, forte investimento em proteção anticorrosiva era mandatória no novo carro: ferrugem deveria ser coisa do passado de forma definitiva, sendo estendida também a todos os outros Vauxhalls em fabricação. Seu nome seria mais britânico: Cavalier, correspondente a “cavalheiro” na língua local. Oferecido apenas como sedã de 2 ou 4 portas, o preço e os níveis de equipamento seriam bem combativos com aqueles encontrados no Ford Cortina.

Para que o plano desse certo, a produção inicial do carro seria na Bélgica, juntamente do Ascona oferecido pela Opel. Tal notícia, entretanto, não foi bem digerida pelos fortes sindicatos locais que queriam a manutenção da produção dos Vauxhall no Reino Unido para assegurar os empregos por ela gerada. A batalha, nesse aspecto, seria longa e delicada.

Mas, a despeito disso, o plano correu como queria Bob Price: em outubro de 1975, no Salão do Automóvel de Londres, o Vauxhall Cavalier era lançado. E as primeiras impressões foram positivas, tanto do público quanto da mídia especializada. Mais bonito que o Cortina de então e bom de andar, a proposta arriscada de Bob Price parecia ser um tiro certeiro, investindo pouco (e ajudando a Opel a diluir seus custos de desenvolvimento) e entregando um produto condizente com a demanda britânica de então.

Havia um ponto bizarro a ser resolvido: até aquele momento, a despeito de serem do mesmo grupo, a Opel vendia carros no Reino Unido enquanto a Vauxhall vendia seus produtos no mercado continental! Isso foi prontamente resolvido com a consolidação de uma rede unificada Opel/Vauxhall, com cada uma sendo responsável por seu mercado e sem a concorrência da outra.

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Prontamente, o defasado Vauxhall Victor saia de linha. A fábrica da Vauxhall em Luton, portanto, teria espaço para a produção do novo modelo do fabricante. A despeito da decisão inicial, um motor Vauxhall de 1,3 litro também fora acrescido à lista de opções no Cavalier – os motores disponíveis eram os Opel de 1,6 e 1,9 litros, parentes próximos daquele 3.0 que veríamos anos depois em nosso Omega.

Mas a coisa não seria tão fácil assim: em 1976, a Ford lançaria um Cortina reestilizado e revisto. Mesmo sendo o Vauxhall de melhor vendagem, o sedã da concorrente ainda vendida muito mais. O desenvolvimento de uma versão hatchback de 3 portas, tanto para o Ascona quanto para o Cavalier, buscava aumentar a participação de mercado de ambos os modelos, sendo lançado em setembro de 1978.

Algo deveria ser feito de forma mais séria. Uma nova geração do Cavalier, toda nova, seria lançada em 1981. Até aquele momento, o Cavalier era o sétimo veículo mais vendido da Inglaterra – no top 3, os Fords Cortina, Escort e Fiesta.

Desenvolvido com tração dianteira e motor transversal ao invés do já antigo layout de tração traseira e motor longitudinal. Mais desempenho, melhor consumo, mais espaço interno e conforto eram metas sérias para o novo Cavalier. Que conheceríamos por aqui muito bem: era nada mais do que a primeira geração do nosso famoso Chevrolet Monza, com pouquíssimas diferenças.

Parte do projeto J-Car de uso global de plataforma e mecânica e mesmo peças de carroceria, o novo Cavalier também tinha muito em comum com o Opel Kadett e Vauxhall Astra de então – uma geração anterior àquela que teríamos aqui em nosso Chevrolet Kadett. Com isso, a possibilidade de compartilhamento de componentes e consequente redução do custo final tornava-se ainda mais forte e decisiva para a criação de um matador de Cortina.

A Vauxhall não contava, porém, com um deslize crucial de sua maior concorrente.

Quando menos é mais

Compartilhando motor, transmissão e boa parte da suspensão com seu irmão menor, o novo Cavalier teria versões sedã de 2 e 4 portas bem como hatchback de 5 portas e futuramente uma versão station wagon de 5 portas. Sem mudanças de desenho ou projeto frente àquele executado pela Opel, demonstrava ser um carro sólido e sem defeitos gritantes.

Lançado em 1981, o novo Cavalier – bem como a terceira geração do Opel Ascona – novamente fora bem recebido pelo público e pela imprensa. Fácil de dirigir, de aparente confiabilidade, econômico e de baixo custo de manutenção, logo chamou a atenção do mercado britânico – principalmente com o forte mercado de frotistas local por questões governamentais aliada à logística das empresas.

A Ford, evidentemente, não ficaria parada frente ao movimento de sua rival. Em 1982, o Cortina sairia de linha e daria lugar ao Ford Sierra. Mantendo a tração traseira, o novo modelo investiria de forma agressiva na questão aerodinâmica como fator para melhoria de desempenho, consumo e conforto. Desta forma, o desenho final do veículo mostrou-se vanguardista e baseado em carros-conceito recentes da fabricante americana.

Entretanto, o público inglês – tradicionalmente conservador – achou tal design radical em demasia. Mesmo vencendo por curta margem alguns comparativos contra o Cavalier, o Sierra era constantemente defenestrado na mídia especializada por seu desenho tido como anormal, bem como pela ausência da opção de uma versão sedã. E essa escolha refletiu-se diretamente no público: poucos Sierras ganhando as ruas, com o Cavalier tomando um mercado inédito em termos de volume para a Vauxhall.

Desta forma, em 1984, o impossível aconteceu: o Cavalier era o segundo carro mais vendido da Inglaterra, entre os Fords Escort e Fiesta! O Sierra? Apenas o quinto colocado, destronando de vez aquele que fora o local sacrossanto de seu antecessor. Não obstante, a Vauxhall era a segunda colocada em vendas locais de forma sólida, ganhando confiança do público de forma definitiva (e com propagandas tocando Layla, do Eric Clapton!)

Tudo isso, portanto, se mostra em um movimento interessante: a criatura trespassou o criador quando a Vauxhall criou, para o público órfão do Cortina, algo mais próximo do Ford com o qual havia obsessão do que a própria fabricante do bem-sucedido sedã! Nos dias atuais, a Vauxhall – bem como a Opel – é parte do grupo Stellantis. E a Ford, incrivelmente, segue como líder de vendas até a morte da rainha (algo que ocorrerá próximo do ano 3000).

E até a próxima!

(*) Engenheiro mecânico e entusiasta da história automotiva.

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