Na histórica terra das pick-ups, a tentativa de se reinventar no segmento não foi positiva quanto se poderia imaginar

Por Renato Passos(*)

Quando pensamos nos Estados Unidos e em automóveis, algumas coisas aparecem como imagens imediatamente em nossas cabeças: motores V8, grandes sedãs, picapes e SUV imensos.

Não é surpresa, portanto, que os americanos são os maiores consumidores de picapes do mundo. Enquanto General Motors, Ford e FCA brigam duramente com suas marcas made in America, Toyota e Nissan tentam tirar um naco desse segmento lucrativo com diversos tamanhos de caminhonetes disponíveis para a escolha do consumidor local.

Mais interessante é saber que veículos como Ford Ranger, Chevrolet S10 (Colorado por lá) e Nissan Frontier são consideradas caminhonetes pequenas pelos yankees! Sendo assim, como é que se sairiam as pick-ups pequenas para o padrão brasileiro – ou, como comumente dito nestes lados de Minas Gerais, uma “Pampinha” da vida?

Bom, até que tentaram. Mas a proposta não foi bem recebida. Quer acompanhar o que aconteceu? Deixe seu mullet crescer, pegue seu copo de Malt 90 e seu K7 do Journey: vamos voltar diretamente para os anos 80.

O furacão de incertezas e as quebras de paradigmas

Já falamos aqui quanto às revoluções ocorridas no mercado automotivo norte-americano pós-1973. A busca por veículos mais econômicos e racionais veio como um furacão de incertezas e tentativas dos mais variados espectros. Nesta toada, dois veículos tinham um público certeiro nos EUA: as picapes baseadas em sedãs tradicionais da terra do Tio Sam.

Não estamos falando das picapes tradicionais, que dariam origem às nossas Ford F-100/F-1000 e Chevrolet C-10/D-20 e suas derivadas. Tratamos aqui da Chevrolet El Camino e da Ford Ranchero: pegue um sedã médio americano (imenso para nossos padrões, ressalte-se), deixe apenas os bancos dianteiros e faça uma caçamba no resto do (imenso) espaço disponível: eis os chamados Coupé Utility.

Provindas desde os anos 1950 nos EUA – e antes disso na Austrália, estes veículos tinham forte apelo com surfistas, jovens que transportavam pouco peso ou pessoas que queriam a comodidade de uma caçamba sem perder o comportamento dinâmico de um automóvel comum, quando as picapes comuns eram sensivelmente mais rústicas ao rodar.

Durante os conturbados anos 1970, uma série de mudanças foram inevitáveis: reduções de tamanho e de potência levaram a uma perda de atratividade destes veículos. Para apimentar ainda mais o contexto, as picapes japonesas começavam a invadir a praia dos norte-americanos, fazendo com que os executivos das marcas locais arrancassem cada vez mais os cabelos.

Croissant com bacon sobre rodas

Falando em marcas locais, a Chrysler Corporation não ia nada bem das pernas no final dos anos 1970. Como medidas em busca de seu próprio salvamento, a marca de Auburn Hills foi buscar auxílio do outro lado do Oceano Pacífico. Lembra-se de quem antecedeu à Chrysler do Brasil e seus sedãs no término dos anos 1960? A Simca. E ela ainda existia na França como parte do conglomerado denominado Chrysler Europe.

Durante os anos 1970, a Chrysler desenvolveu o projeto C2 para o sucessor do Simca 1100: um hatchback moderno, de linhas limpas, tração dianteira e motor transversal. Seu nome era Horizon e seu alvo era claro: Volkswagen Golf, Opel Kadett, Ford Escort e quem quer que surgisse neste segmento. Sendo uma versão encurtada do Simca Alpine, um modelo de maior porte, o Horizon era relativamente largo para aquele segmento – o que seria importante no futuro.

Lançado em 1978, vendido como Simca na França e Chrysler na Europa, o modelo francês foi eleito carro do ano em 1979. Infelizmente, isso não foi suficiente para evitar o colapso da Chrysler Europe: a Simca foi comprada pela Peugeot e unificada a outra marca histórica daquele país sob comando da marca de Lyon, a Talbot. Assim, o veículo seria vendido como Talbot Horizon por toda a Europa até o ano de 1986.

A Chrysler, entretanto, tinha todos os dados do projeto C2: era hora de reproduzi-lo em solo norte-americano como contraofensiva aos compactos japoneses que, pouco a pouco, iam ganhando força indiscutível naquele mercado. Desta forma, em janeiro de 1978 era lançada a versão norte-americana do projeto C2: os gêmeos Dodge Omni e Plymouth Horizon. Eram os primeiros modelos de baixo custo com tração dianteira produzidos nos EUA, assim como o primeiro produto da Chrysler como um todo com este layout mecânico.

Comercializado por onze anos com poucas mudanças, foram construídos cerca de 2.500.000 Omnis e Horizons, sendo as versões com emblema Plymouth mais populares do que os modelos com a marca da Dodge. Entretanto, mais importante que o início do processo de recuperação financeira, o projeto C2 deu à Chrysler a base para novos projetos que poderiam vir no futuro: a plataforma do Omni/Horizon seria identificada pela letra “L” e serviria como base para novos produtos nos anos seguintes.

Royal Straight Flush sobre rodas?

Um destes produtos seria revelado em 1979: o Dodge Omni 024 – e seu gêmeo natural na Plymouth, o Horizon TC3. Com três portas e perfil mais esportivo, estava para o Omni regular tal qual o Scirocco estava para o Golf contemporâneo. Fabricado até 1983, foi equipado com dois motores de quatro cilindros: 1,7 litro da Volkswagen (pois é!) e 2.2 da própria Mopar.

Embora tenha sido vendido até no Japão a partir de 1980 e tenha oferecido um pacote visual da De Tomaso italiana, não foi um sucesso de vendas e foi substituído por uma evolução natural, ainda baseada na plataforma L. O nome do sucessor? Charger. Sim, sem motores V8 e tração traseira. Blasfêmia ou não, seria vendido até 1987 e contaria com versões interessantes dotadas de turbocompressor e assinadas por ninguém menos que Carroll Shelby. Na Plymouth, a mesma mudança: de TC3 para Turismo.

Mas como um pequeno cupê esportivo viraria uma picape? Reza a lenda que a decisão veio de Lee Iacocca – pai do Ford Mustang e grande salvador da Chrysler nos anos 1980. Conta a história que durante uma sessão de jogatina em uma noite de sexta-feira, Iacocca e Hank Carlini – seu guru para desenvolvimento de projetos especiais – começaram a debater sobre a ideia em questão.

A história prosseguiu, e Carlini logo mostrou a Iacocca um sketch de como ficaria a picape do Dodge Charger. Tão breve viu, Lee disse a Carlini: “Faça!”. E assim foi feito. Basicamente, seria pegar o 024/Charger até a porção imediatamente anterior ao banco do motorista. Dali para trás, uma caçamba condizente com o tamanho do carro: uma picape barata, com atrativo para os jovens. Ideal para colocar a prancha de surfe na caçamba, buscar o amor da vida e colocar um Bryan Adams para tocar. Vitória certeira, um Royal Straight Flush do pôquer no mercado automotivo americano.

Parecia uma boa ideia: era hora de mexer os pauzinhos. Inicialmente, o entre-eixos do Charger foi modificado, saindo de 2.451mm para 2.642mm. No eixo traseiro, saia o esquema de eixo de torção com braços arrastados e entrava um eixo rígido tubular localizado por feixes de molas semielípticas com amortecedores inclinados em direção ao eixo longitudinal do veículo. Isso daria à picape uma capacidade de carga de 519kg, para além de capacidade de reboque superior a 385kg. Em tempo: a primeira picape de tração unicamente dianteira fabricada nos EUA.

Nada mal para uma picapezinha de aproximadamente 1.100kg de peso líquido. Ainda mais quando sabemos que a capacidade da Chevrolet El Camino da época – maior, com tração traseira e motores V6 ou V8 – era de 570kg. Na suspensão dianteira, a construção MacPherson com barra estabilizadora permanecia. Para melhor utilização do espaço da cabine, as portas de acesso ao habitáculo são menores que as do Charger: com adaptações, foram utilizadas as do Omni regular.

A hora do “vamos ver” chegou!

O ano de 1982 chegava, e com ele o primeiro fruto deste projeto: o Dodge Rampage, vendida nas versões básica e Sport. Sua caçamba era integralmente construída com parede dupla de aço galvanizado, para maior resistência e durabilidade, exibindo 1.575mm de comprimento por 1.320mm de largura (1,07 metros entre a torre dos amortecedores). Ainda na caçamba, havia um único comando para abertura da tampa – esta, por sua vez, escondia seus cabos de sustentação enquanto aberta.

Na dianteira, para além do visual do Dodge Charger, o parachoque era reforçado com uma barra metálica escondida por detrás do componente. No interior, o visual geral do Charger era mantido, com dois lugares e um porta-objetos atrás dos bancos para o armazenamento de pequenos itens.

Inicialmente, o veículo estava disponível com o motor de quatro cilindros, dupla carburação e 2,2 litros da Chrysler, atrelado a uma transmissão manual de quatro velocidades ou opcionalmente uma automática de três. Desta forma, a aceleração de 0 a 100km/h levava acima de 16 segundos para ser atingida com a transmissão sem embreagem, embora alcançasse bons índices de consumo: até 10,7 quilômetros por litro de gasolina na cidade, com índice semelhante de até 16 km/l para uso rodoviário.

Para manter o Rampage em linha reta sob frenagem brusca, a Dodge incorporou uma válvula reguladora de pressão de frenagem entre os eixos dianteiro e traseiro sensível à carga aplicada, com uma alavanca entre o eixo traseiro e a caixa de carga para aumentar ou diminuir a força de frenagem distribuída nas rodas traseiras. Quando uma carga pesada empurrava a suspensão para baixo, a válvula se abria, dando aos freios traseiros uma parcela maior do poder de frenagem total. Quando a caçamba estava vazia ou com carga leve, a válvula se fechava e limitava a pressão do fluido aplicada aos freios traseiros.

Seus concorrentes naquele momento, para além da onipresente Chevrolet El Camino (cujos compradores julgavam a Rampage demasiadamente pequena), eram a Volkswagen Caddy (pequena picape baseada no Golf) e a Subaru BRAT. Equipamentos tais como freio a disco servo-assistido, vidros verdes, rádio e bancos individuais estavam presentes na Rampage, que custava 6.700 dólares na época em sua versão básica – a Sport acrescia U$500 a este valor.

No primeiro ano disponível para o mercado, foram vendidas 17.636 Rampages. Como comparação, foram comercializadas 34.615 Ram 50 no mesmo período. Nota da redação: A Ram 50 era a avó da Dodge Dakota. Também era a avó da Mitsubishi L200 com novos emblemas: Chrysler e Mitsubishi estabeleceram forte parceria desde 1980 até o final dos anos 1990.

Tira casaco, bota casaco

Para 1983, mudanças seriam necessárias. E elas vieram: logo de cara, uma transmissão manual de cinco velocidades estava disponível, bem como a versão “Rampage 2.2” tomava o lugar da Rampage Sport (embora todas as Rampage tivessem motor 2.2…). Entretanto, a versão gêmea da Plymouth também aparecia: chegava a Scamp, em versão básica e GT.

Os modelos de topo das pick-ups vinham com pintura bicolor, adereços no capô, faixas coloridas e outros itens de decoração. Além disso, rodas de 14 polegadas pintadas de prata com sobre-aro cromado e pneus de letras brancas compunham o visual. Por dentro, assentos em tecido com acabamento especial (preto com faixa vermelha larga ou apenas preta), hodômetro parcial, tacômetro e relógio estavam presentes.

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A lista de opcionais era longa: para além do câmbio automático TorqueFlite já citado, uma imensidão de itens se fazia disponível. Anote aí: ar-condicionado, limpadores intermitentes, sistema de arrefecimento para serviço pesado, rodas diferentes, espelhos com comando interno e vários modelos de rádio.

Números finais para 1983? As vendas do Rampage caíram para 8.033 unidades. Parte da queda poderia ser imputada ao lançamento – e natural canibalização – da Scamp. A Plymouth, por sua vez, havia vendido apenas 2.184 Scamps e 1.380 Scamp GT (que era marginalmente mais lucrativo). Era o fim de linha para o modelo da Plymouth, mesmo tendo sido lançado naquele mesmo ano!

Alguns dados interessantes para as Plymouth Scamp: cerca de um terço dos veículos básicos e cerca de um quarto das Scamp GT possuíam o câmbio automático; a maioria dos compradores optou pela transmissão manual de cinco velocidades. Além disso, metade das Scamp vinham de fábrica com rádio estéreo – sem rádio nenhum, por outro lado, era quase metade. Unidades com cobertura marítima de fábrica? 15% das Scamp básicas e quase metade das Scamp GT

Uma boa ideia desperdiçada?

Ainda em 1983, uma coisa interessante – e talvez tardia – ocorreu: O mítico Carroll Shelby desenvolvia, naquele momento, modelos em parceria com a Chrysler. O Charger, “pai” da Rampage, era um deles. Ao ver a pequena pick-up, Shelby teria dito: “vamos fazer uma versão Shelby dela também!” Entretanto, ela nunca seria fabricada de forma oficial: em 1984, mesmo com pequenas atualizações visuais, preço elevado em 100 dólares e 11.732 unidades vendidas naquele ano, era o fim da carreira da Rampage.

A despeito de tudo isso, a Dodge Rampage era um veículo extremamente divertido ao se dirigir. Disse a revista Popular Mechanics em sua edição de setembro de 1982: “A Rampage deveria estar em um comparativo de carros esportivos, já que é mais divertido de pilotar do que qualquer carro de dois lugares que você possa comprar por menos de 20.000 dólares – seu desempenho simplesmente o surpreenderá. Se você precisa de um utilitário para dirigir em vez de transportar algo, esse é o carro.”

E tem mais, quando comparado a seus principais concorrentes: “O Rampage de 2,2 litros com tração dianteira é de longe o mais rápido deste grupo em um teste de aceleração em quarto-de-milha, sem mencionar mais rápido que a maioria dos esportivos com motores na casa de dois litros.”

Segue: “Ele possui os segundos melhores freios (do grupo) e quando equipado com os pneus Firestone HPR pegajosos, ela abre caminho em um skidpad e percorre um slalom tão rápido quanto qualquer veículo que você queira nomear, incluindo aí Porsches e Ferraris. Nas avaliações dinâmicas, alinhando-a contra essas picapes, era tão fácil de se destacar quanto pescar atirando em um barril cheio de peixes.”

E para finalizar: “Ninguém realmente compraria uma Rampage como um utilitário estritamente funcional – a caçamba é muito curta para transportar uma única motocicleta. Mas você pode transportar madeira leve ou plantas na parte de trás, enquanto os motoristas da Porsche se adaptam a caminho da enfermaria. A Rampage ainda tem um estilo bonito, elegante e contemporâneo como um míssil de cruzeiro – é o El Camino dos anos 80.”

Tal qual Carroll Shelby, alguns entusiastas viram este viés na “pampinha” malfadada americana: um modelo especial denominado “California Shelby Rampage” foi construído em 1984 e vendido apenas em algumas concessionárias Dodge da região da Califórnia. De diferente, rodas de 15 polegadas, a frente modificada do Shelby Charger e um bodykit pela carroceria.

Hoje raras de serem encontradas e disputadas por colecionadores, Lee Iacocca tentou – e previu, sem querer, algo que seria de extrema aceitação em muitos pontos do mundo. Mas, naquele momento, fracassou com a pequena e valente pick-up.

(*) É engenheiro mecânico formado pelo Cefet-MG

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