Mexe ali, um novo membro aqui, detalhes e afins: um final adequado para uma vida intensa

Por Renato Passos (*)

Embora muitos não saibam, a peteca é um esporte genuinamente brasileiro. E basicamente o esporte consiste em não deixar um artefato com penas e base de borracha – também chamado de Peteca – cair no chão dentro de um espaço delimitado, tal qual a bola em um jogo de vôlei.

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A Fiat, até onde se sabe, nunca patrocinou nenhum campeonato da modalidade: o primeiro campeonato mundial foi disputado na Estônia em 2001, a despeito da origem secular do esporte nas mesmas montanhas de Minas onde se situa o fabricante italiano.

Mas a marca de Turim, mais de uma vez, já se viu diante do dilema: como não deixar a peteca cair? No caso do Tempra, com o decorrer do tempo, tornou-se uma questão cada vez mais presente, seja pela modernização de seus concorrentes ou pela defasagem natural de seu produto.

E o que fazer? O primeiro foi entender que “Pau que dá em Chico também dá em Francisco”, como diz o ditado popular brasileiro.

Familia ê, família ah: Família!

“Se muitos dos novos concorrentes do Tempra entravam na terra de Cabral graças à redução da alíquota do Imposto de Importação de 35 para 20% em meados de 1994, por que não utilizar do mesmo recurso para incrementar a linha e, em um âmbito geral, aumentar o volume de vendas ao passo que acessava novos mercados?”

Eis o pensamento dos italianos da Fiat, talvez em uma noite regada a vinho, comida mineira e muita gesticulação. Mas independente do cenário por detrás da ação, a fabricante de Turim percebeu essa possibilidade. Mais do que isso, a marca vivia um boom de sucesso justamente com um produto importado e com laços fraternais com o Tempra: o Tipo foi um dos carros mais vendidos de 1994 no mercado brasileiro, mesmo sendo fabricando além-mar.

Desta maneira, em versão única, chegava a nosso mercado a Tempra SW também no ano do tetracampeonato da Seleção Brasileira de Futebol. Só que ao contrário de Bebeto e Romário, não convenceu: Embora espaçosa e com amplo porta-malas, o público brasileiro preferia o estilo menos radical de suas concorrentes. Isso acontecia, principalmente, pelo formato da seção traseira da perua.

Na parte de trás, o teto subia gradualmente até terminar numa traseira reta, como as station-wagon da Volvo na época. Além disso, as janelas posteriores eram trapézios invertidos, uma vez que a porta para os passageiros de trás era a mesma do sedã. Detalhe interessante era a tomada de ar tipo NACA disposta no teto para que o defletor traseiro mantivesse o vidro da tampa limpo pela ação do ar.

A tampa do compartimento de bagagem feita de material polimérico composto por fibra de vidro e tinha o complemento na seção para-choque retrátil: o porta-malas tornava-se plano quando uma parte dele se rebatia para baixo, tornando mais fácil o acesso do piso do compartimento para cargas mais pesadas e volumosas ou pesadas. Essa solução seria repetida mais tarde na Marea Weekend, substituta natural da perua em questão.

E por diferir do projeto nacional, a Tempra SW trazia faróis, para-choques, grade e retrovisores distintos dos usados no Tempra brasileiro, bem como repetidores laterais da luz de posição. Por dentro, a diferença era ainda mais considerável. O painel digital que era opcional no europeu era item de série na perua, enquanto havia a opção de airbag nunca disponível no modelo tupiniquim.

A diferença entre caipirinha e vinho também se fazia presente na mecânica: a suspensão traseira era por braço arrastado como no Tipo e no Tempra europeu. Debaixo do capô, o motor 2.0 de oito válvulas usava injeção multiponto, vibrava menos por ter árvores de balanceamento e era mais potente que o nosso (109 cv, menos 6 que na Europa, para adequação à gasolina nacional).

O começo do fim

Para 1995, além do Tempra básico com 8 válvulas e injeção monoponto, outra novidade: que tal aliar todo o desempenho da versão Turbo i.e. com a elegância da carroceria quatro-portas, principalmente na versão Ouro? Buscando criar assim um sedã executivo adequado às preferências e posses nacionais, nascia a versão Stile.

E Stile, falando como se escreve por ser “estilo” em italiano. E não com a pronúncia de “style”, palavra homônima no inglês mas com forma de falar distinta e mais difundida em nosso cotidiano, levando assim a uma pronúncia da versão do sedã comumente errada pelas ruas de nosso país Sem frisos laterais e com rodas de desenho próprio, a versão chamava atenção pela elegância e poderia enganar os incautos nas estradas que pensavam se tratar de mais um Tempra como qualquer outro.

A versão fez sucesso – além de combater de forma mais forte o sucesso do Vectra GSI de então – de forma a extinguir o Tempra Turbo de duas portas para 1996: nesse afã, o sedã passaria a se chamar Tempra Turbo Stile. Ainda para 1996, o Tempra recebia novas rodas, além de faróis com perfil mais baixo e duplo refletor (quatro lâmpadas acesas em facho alto) para iluminação de primeiro nível, suprindo antiga carência do sedã médio.

Na parte de trás, as lanternas traseiras traziam uma “bolha” na seção de luzes de ré e direção ao invés da seção trapezoidal então existente. Por dentro havia novo console entre os bancos, cortinas contra o sol no vidro traseiro como opcional nas versões mais caras e a opção de revestimento dos bancos em couro bege no Stile, que se tornaria rara e objeto de colecionador graças a problemas no revestimento que era substituído, ainda em garantia, pelo similar da cor preta.

Por fim, o vidro do motorista ganhava um sistema de alívio da pressão interna, que o descia alguns centímetros para que a porta fosse fechada com menos esforço. Nesse ano também, pelo fim da fabricação nas plantas italianas, a Tempra SW deixava de ser importada. Mas, mais importante que tudo isso, foi o lançamento da segunda geração do Vectra em meados de 1996: naquele momento, o Tempra tornava-se obsoleto no segmento de sedãs médios e começava a correr contra o relógio, fomentado por um concorrente que arrastou multidões para os concessionários da Chevrolet.

Para 1997, mais mudanças – afinal, a peteca não podia cair apesar dos pesares. Um rearranjo na linha e na nomenclatura das versões era executado: haveria, a partir dali, versões SX de 8 e 16 válvulas, HLX 16V e Turbo Stile. A SX era mais simples que a antiga i.e., sem conta-giros de série e com painéis de porta de Tipo em busca de menor preço para o consumidor final.

Estava disponível também com o sistema Autonomy, que adaptava o sedã a pessoas com deficiência física, incluindo opções como comandos manuais de acelerador e freio e mesmo uma peculiar porta corrediça para o motorista. No Stile e no HLX, novas rodas de alumínio de 15 polegadas usavam pneus 195/55, pela primeira vez utilizando pneus abaixo de perfil 60 em um veículo nacional não esportivo.

Tra te e il mare(a)

Do lado de lá do oceano, no segundo semestre de 1996, era apresentado o Marea: em versão sedã e perua, seria o modelo que substituiria o Tempra no velho mundo. Por aqui, no decorrer de 1997, logo começaram a aparecer unidades brancas deste sedã que era bem mais alinhado com a virada do milênio, sempre com as indefectíveis placas azuis com as letras “FB” e quase onipresentes pela capital mineira disposta sobre a Serra do Curral.

Lembra-se quando caixotes sobre rodas e Fiats Regata fizeram o mesmo no final dos anos 1980? Era, portanto, um prenúncio do que estava por vir. Ainda assim, o ano de 1998 guardava novidades para o sedã que se aproximava da forca: novos para-choques na cor da carroceria eram de série para toda a linha, bem como grade revista e maçanetas embutidas na carroceria. Atrás, a régua sobre a placa de identificação passava a vir pintada, bem como os emblemas foram reposicionados para fora da tampa traseira.

Por dentro, pequenas mudanças de acabamento se aliavam ao rádio/toca-fitas incorporado ao painel. As versões se resumiam a Tempra 8V (que tornava oficial a identificação usada pelo mercado) e 16V, sem distinção de acabamento. Era, portanto, o fim do valente motor turbocomprimido no sedã.

Por fim, na suspensão dianteira, a barra estabilizadora era desacoplada do braço inferior presente no sistema McPherson. O sistema agora era conectado por meio de bieletas ligando-o às colunas de suspensão, o que melhorava o comportamento dinâmico e reduzia a transmissão de impactos.

Mas era tarde demais. Uma música italiana chama-se “Tra te e il mare”, ou “entre você e a maré”. Em maio de 1998, com uma visual a ponto de combater o Vectra na briga pelo mercado ficamos Tra te e il marea:  o Marea chegava ao mercado nacional com estilo mais moderno, novos itens de conforto e motor de cinco cilindros e 2,0 litros com potência entre 142 e 182 cv (esta no Turbo) . A oferta de um Marea mais simples e barato, o SX – e com menor potência (127 cv) para reenquadramento tributário – representou o golpe definitivo para o Tempra.

O Fiat Tempra foi primeiro sedã médio da marca italiana no Brasil, elegante e confortável, saía de produção em 30 de novembro de 1998 com total de 204.795 unidades — havia acabado o “tempo de Tempra”, como se anunciava com pompa nos comerciais de TV na época do lançamento ao som de Night and Day do U2. E entrava para a história como um Fiat inovador em vários aspectos, talvez o mais bem sucedido de sua categoria até os dias de hoje nos registros da marca de Betim.

Um epílogo (in)devido

Na parte 1 deste texto, iniciei a missiva dizendo sobre escrever sobre uma paixão – o que pode soar para alguns de forma antiprofissional, já que jornalismo deve ser imparcial e desprovido de paixões. E nuancem ainda mais fortes foram aplicadas na terceira parte, onde dizia sobre o sedã da Fiat, sobre músicas com quase 30 anos e sobre gosto pessoal: volume suficiente de fatos para transformar isto tudo em mais um emaranhado de palavras e imagens.

Mas me permitirei, porque as coisas se mesclam e perduram como lembranças, imagens, sensações e certezas na vida de mais um ser humano enfurnado entre quatro paredes tal qual um pássaro em uma gaiola, sem poder voar e “emundar-se”, como diria o poeta de outrora.

Em 1993 nascia pelas mãos de engenheiros ítalo-brasileiros o Tempra 16v, enquanto pouco antes nascia pela mãos de artistas de Birmingham uma música diferente daquela que os tornaria famosos, com tons mais tristonhos e maduros e com uma letra que remetia à dureza do mundo comum e ordinário no qual temos que viver. Nada a ver com carro.

Mas, para uma criança com menos de 2 anos de idade naquele momento, aquela música se tornaria uma espécie de companheira para uma vida inteira dez anos depois. Anacrônico, eu sei. Mas ela embalaria, dentre outras coisas, algo que provinha do outro ponto alumiado daquele começo de 1993: o Tempra 16v.

BVO-8687. Tempra 16v 96/96, Verde Turmalina. Retirado 0km na SAF, em Sorocaba/SP. Em junho de 1998, fora dado como entrada na aquisição de um Marea por um funcionário do Banco do Brasil. Isso se deu na extinta concessionária Motorbel, na Avenida Francisco Sá, sobre um dos córregos ocultos que cortam Belo Horizonte.

Após negociação, seria revendido por R$ 18 mil para um pai de família que sempre tivera o modelo em estima e realizara ali um sonho terreno. Afinal, para viajar com a esposa e três filhos, era um meio de prover a eles o conforto e boa vida que ele não tivera no passado sofrido naquele mesmo lado da cidade.

Em meados de julho de 1998 ele sai de Ipatinga, no leste de Minas Gerais, para buscar seu carro. Junto dele, um filho com 7 anos de idade. Chato, inquieto, surpreendentemente apaixonado por carros para aquela idade. Transação completa e retorno para casa: eis o início de uma vida. Aquele garoto, já tão fissurado com o mundo automotor, sabia distinguir facilmente o barulho daquele sedã italiano chegando a seu lar a qualquer hora que fosse.

Seu quarto, por obra do destino, era sobre a garagem. E quantas vezes, nas manhãs frias de inverno, o ronco decidido daquele motor não fora o despertador daquela criança? A criança lia, de forma assustadora e sempre que possível, sobre carros. Foram horas dentro daquele carro lendo manual, fingindo que dirigia e imaginando que algo daquele gênero seria seu, com aquela pose e força, no alvorecer de uma vida adulta.

E conviveu com aquele sedã até 2005, já com algum peso do tempo e com alta quilometragem nas costas. Da mesma forma que a música lhe marcou e ainda remete-lhe a momentos diversos quando tocada, o Fiat Tempra assim o fez. Foi-se em meio à adolescência, onde por influência daquilo que fora aquele carro decidira seguir carreira em meio a isso.

O tempo passou. O então adolescente perdeu o mel da inocência e internou o fel da vida adulta. Mas fez-se engenheiro mecânico e trabalha com carros – poderia ser melhor, mas muitas coisas assim poderiam ser em um ano tão desalentador para a humanidade.

Aquela música acompanhou, acompanha e acompanhará aquele jovem até o fim dos seus dias, seja ele quando for. E uma vontade que permanece nele – eu, por detrás dessa tela – é de recomprar aquele Tempra verde e tê-lo novamente como meio de desanuviar dos dias ruins retornando aos momentos que eram positivos na infância.

Por ora, segue o sonho.

(*) É engenheiro mecânico formado pelo Cefet-MG

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